domingo, 16 de fevereiro de 2014

UMA MISSA NO TCHISSOCA - CALUQUEMBE

 

* Conto *

Finais dos anos 50, ou princípios dos 60, do século passado, claro. Tchissoca era um aldeia rural muito próxima, no sentido nordeste, da vila comercial de Caluquembe. Na atualidade julgo constituir um bairro desta (agora) extensa cidade.

O padre saletino, leia-se da congregação dos Missionários de Nª Sr.ª de la Salette, de nacionalidade suíça, Francisco Eggs o qual missionava na Missão Católica do Cola a duas dezenas e tal de km de Caluquembe encontrava-se com uma forte infeção, panarício, num dedo da mão pelo que necessitando de tratamento frequente no hospital da Missão Evangélica Filafricana (hoje Igreja Evangélica Sinodal de Angola) a poucos km também do centro de Caluquembe, pelo que se hospedara em casa de meus pais, José Maria Rodrigues e Irene da Conceição Rodrigues, dada a sempre hospitalidade do nosso lar para com amigos, missionários, caixeiros-viajantes ou outros passantes, às vezes simples conhecidos ou até desconhecidos, que ali encontravam agradavelmente sempre almoço ou jantar e quantas vezes dormida.

Mas a estadia do Padre Francisco era diferente, um tanto prolongada por necessidade de frequentes idas ao hospital para tratamento pós-cirurgia, até que ficasse melhor do preocupante problema do dedo… Assim, o tempo dava-lhe para ler o breviário e naturalmente outros livros que tinha consigo, e conversar sobretudo com os mais disponíveis; eu era um deles pois na ocasião sendo estudante estava de férias, e até pratiquei um bocadito a língua francesa uma das línguas faladas por aquele a quem eu pedia por vezes para falarmos um pouco em francês mas expressar-me-ia muito primariamente decerto… Porém a língua primordial do P. Francisco era o alemão embora na época já se exprimisse razoavelmente em português. Questionava-o sobre religiões diversas cristãs e não só do mundo ao que me explicava pausadamente com a ajuda de um dicionário apropriado e falávamos de outros assuntos também. Mostrava fotos da sua terra. Terá cofiado muitas vezes as suas longas barbas pretas, era um homem novo.

E fez questão de naqueles dias ou semanas, já não consigo precisar por quanto tempo esteve hospedado na nossa casa, em dar alguma doutrina à Maria, a rapariga que meus pais criaram desde muita nova e até à juventude, e julgo lembrar-me que eu também recebia alguma catequese. Quanto a meu irmão Gino não me recordo da sua participação nestas.

Nosso outro irmão, Camilo, tinha uma lambreta, estranha lambreta ou scooter cinzenta, de nacionalidade Checoslovaca, salvo erro, vinda de Benguela de um fornecedor do estabelecimento comercial de meu pai, firma que muito lhe vendeu mas também muito encaixou alguns monos, embora o evoquemos naturalmente com benevolência claro. Logo nas primeiras vezes que se tentou pôr o motor a trabalhar da recém chegada motoreta foi o cabo dos trabalhos!, mesmo sendo nova a estrear. Mas enfim, lá se conseguiu que pegasse empurrando-a e depois começou a pegar melhor mas nem sempre foi pacífico… Várias vezes pedia ao Camilo que ma emprestasse para dar uma voltita ou para ir tratar de qualquer assunto que eu inventava e sugeria. Aliás se me encarregassem de ir ao correio ou a outro sítio isso era muito agradável pois surgia assim uma oportunidade assumida por ele ou pelo nosso pai para grande prazer meu. Qual o jovem que não gosta de andar de mota?! Gino e eu já tivéramos anteriormente uma motorizada NSU Cavalino mas na ocasião já não a possuíamos.

Num daqueles dias da sua estadia combinámos o P. Francisco e eu: iríamos na manhã seguinte à tal aldeia do Tchissoca para ele celebrar uma missa pontual em local para improvisado culto. E assim foi: com natural expetativa, estava uma linda manhã de sol suave, como tantas da nossa terra, ele havia preparado a sua mala apropriada com o cálice, hóstias, vinho de missa, panos ou toalha apropriada e provavelmente um paramento fácil de transportar para a celebração, e lá fomos cedo, requerida com deferimento a lambreta, eu conduzindo-a, e ele seguindo sentado atrás com a santificada malita decerto e envergando a sua batina, que teve de ser arregaçada para montar a mota. Era hábito na altura assim trajarem os sacerdotes, no caso batina de zuarte cinzento.

O caminho de terra com largura suficiente qual moderna ciclovia, na época desenvolvia-se na mata de savana ora a direito ora serpenteando as árvores ou arbustos verdes ou acastanhados, mas muito liso devido à frequente passagem de zorras, meio de transporte de arrasto, estruturado em tronco em forma de forquilha, puxado por uma ou duas juntas de bois e que transportava um ou mais sacos de milho ou outros produtos agrícolas, materiais ou até animais de criação (porcos, cabritos, galinhas, etc.) para venda. Os caminhos eram pois lisinhos, dava gozo andar de bicicleta, motorizada ou mesmo a pé, seria como andar em pista suavemente consistente mas de piso bem direitinho, num ou noutro local um pouco arenosa mas sempre agradável, confortável… Mais ainda se fruía em tempo ameno e sobretudo na época seca ou cacimbo.

A nossa chegada e a missa foi um pequeno acontecimento na aldeia que saiu fora do quotidiano. Os aldeões, na sua maioria camponeses mas também alguns trabalhadores de folga ou não e seus familiares foram-se juntando. Improvisado o altar numa mesita colocada numa divisão duma casa tradicional dos quimbos, de pau-a-pique ou de adobo coberta a capim, lá deu guarita aos fiéis que se dispuseram até à porta aberta e certamente alguns no exterior. Homens, mulheres, meninos e meninas; velhos, novos e crianças.

Foi um momento singelamente interessante, inesquecível; os habitantes tiveram uma missa imprevisível, quase campal, que acredito muito os terá confortado.

Um dos empregados de meu pai, o simpático, sempre disponível e muito trabalhador António Tomé, estava de “baixa”, como hoje se diria, por doença. Quando se aproximaram as pessoas que iam assistir à missa ele também apareceu um tanto embaraçado com a minha presença, ou seja, do filho do patrão já que estava de parte de doente… Saudámo-nos todavia muito amigavelmente e entendi que mesmo doente ou indisponível para o trabalho pode participar-se em ato religioso e espiritual que não exige esforço físico. Éramos, somos, bons amigos, espero ainda revê-lo um dia…quem sabe…

Terminada a eucaristia, arrumada a malita, conversado um pouco com os aldeões, o simpático P. Francisco e eu, fizemos o caminho de volta para nossa casa em Caluquembe, ou mais especificamente como alguns diziam, para Sandula. Tal como a viagem de ida, a de regresso correu sem percalços e regressámos contentes com a jornada acontecida. Esperar-nos-ia decerto um bom, como era hábito, pequeno almoço ainda ou já o almoço.

Foi um dia diferente que partilhando recordo com muita saudade de outros tempos…

Deixei de ver o P. Francisco quase logo a seguir e durante décadas mas alimentei sempre com muita saudade a ânsia dum dia o reencontrar mas que nunca aconteceu ou quase nunca se daria… Até que, muito, muito, ocasionalmente, Deus proporcionou-me isso, reencontrei-o imprevisivelmente em 2003 no Lubango no centro pastoral da respetiva congregação de forma casual, pois ele missionava ou missiona na província de Benguela e deslocara-se ao Lubango por acaso e por pouco tempo. E eu era a primeira vez que fui a Angola após a diáspora de 1975! Assim providencialmente nessa visita àquele centro pastoral, sem sequer imaginar minimamente que ele estaria por lá, com emoção súbita foi-mo anunciado e finalmente revi-o passadas mais de quatro décadas depois de nos conhecermos e convivermos e após tanta minha alimentada esperança de anos, que já quase se extinguira, dum reencontro mas que acabou mesmo por acontecer nessas circunstâncias felizes. Com alegria devo ter-lhe falado com exuberância de Caluquembe, de nossa casa, de meus saudosos pais, de minha família, de mim, de episódios consigo vividos da minha juventude, factos que eu registei indelevelmente e tenho bem presentes na memória, pois esses tempos marcaram-me agradavelmente dada a grande convivência de nossa família com os missionários saletinos. Mas fiquei com a sensação que ele pouco se lembrava daquela estadia em nossa casa em Caluquembe. Registei esse encontro de 2003 em fotos. Pediu-me para quando eu regressasse a Portugal, telefonasse a uma família sua amiga residente em Lisboa para lhe dar suas notícias o que cumpri.

É assim a vida: uns gravam natural e inapagavelmente uns factos, outros outros, mas tudo fazendo parte das estórias pessoais…que ora se encontram ou não…

                                                                                                                         imageJúlio Henrique Rodrigues

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