Mulher mumuila- Foto de Cecile Martin
“A CÉSAR O QUE É DE CÉSAR …”
Vi - não interessa por que meio - no programa do Jô um Rui Morais e Castro a preleccionar com palavras e gestos, de forma ignominiosa, sobre a cultura (práticas, costumes e tradições) de duas tribos do sul de Angola: Vamuíla e Vacuvalê.Ante tais dislates, movido pelo respeito àquele povo, não devo calar a minha indignação; mas sim, de forma sucinta, reprovar e corrigir o chorrilho de disparates proferidos.
1. Nasci e vivi na povoação da Huíla (a mesma Huíla que deu nome à Província e foi mãe da sua capital - Lubango) no meio do povo mumuíla, no singular; vamuíla, no plural. Esta tribo, dispersa por uns cem mil km2, faz parte da etnia Nhaneca - Humbi, uma das nove etnias de Angola, segundo a divisão etnológica.
2. As vamuíla não praticam nenhum tipo de excisão genital nem a absurda dilatação e bissecção do clítoris. Só os homens (ovalume), orgulhosamente, são cicuncidados (excisão do prepúcio) (etanda).
3. Os seus penteados, trabalhados conforme a idade, passam por diferentes formatos . Na adolescência (ovacaínto) usam finas tranças adornadas com missangas. Ao atingirem a puberdade, em grupo e ambiente festivo (ohicô), com uma pasta feita com manteiga rançosa (ongundi) e pó de hematite (oncula), solenemente, é-lhes moldado no centro da cabeça uma elevação em forma de crista (otxipuquica). Cerca de um ano depois, como confirmação da sua maturidade, a crista é enfeitada com tachas amarelas (eriquê). Segue-se - num espaço de tempo variável - a substituiçao do "eriquê" por outra, de dupla saliência, moldada com a mesma pasta, na horizontal occipital, de orelha a orelha (ohundia). Este penteado indica que a rapariga (omuhicuena) está na idade de escolher, entre inúmeros namorados, o seu preferido. Ao acontecer é acertado o casamento. Pago ao pai ou a um tio da noiva pelo pai ou um tio do noivo o dote acordado (ovitumbicô), sem quaisquer cerimónias, o casal vai para a sua casa próxima dos pais do marido. O penteado (ohundia) é transformado em tranças espalmadas (omampútia). Com o nascimento do primeiro filho as "mampútias" são desfeitas dando lugar a novas tranças, mais numerosas e redondas e aplicada uma anilha de caniço. Com o nascimento de mais filhos são aplicadas mais anilhas, sem limites, até cobrirem toda a cabeça (olunhonga).
As mulheres maninhas (estéreis) usam tranças iguais as mostradas no parágrafo anterior; porém, sem anilhas. Só em caso de morte de uma irmã com filhos herda o direito a aplicação de anilhas. De registar que as maninhas são olhadas com desdém e até humilhadas pelas parideiras. Por vezes são repudiadas pelos maridos ou terem que suportar, com resignação, a presença de outra mulher levada pelo marido-bígamo.
Tranças com anilhas de caniços
Vahicuena
Penteado eriquê
4. Os búzios (onompandê), de preferência helicoidais, presos sobre uma chapa de latão a uma cinta de couro, oferecidos pelo pai, tio ou marido, além de adorno e elevado estatuto social, simbolizam o grau de riqueza do ofertante. As mulheres gozam dos seus direitos; excepto o direito de posse de bens próprios.
Ostentação de búzios
5. O adultério não é considerado crime. Nem por isso é praticado a esmo: raro e irrelevante entre as classes de nível económico e social baixo. Acontece, por vezes, entre mulheres bonitas e homens abastados. Estas mulheres, de concerto com o marido, seduzem homens ricos. Descobertos em flagrante pelo marido, por um irmão ou primo deste, o amante é obrigado a entregar um objecto de uso pessoal (oviumbô) como prova do acto. O caso é levado a "tribunal", presidido pelo sova (rei), que estipula o pagamento (ucoi): em bois (uma ou duas cabeças) ou em dinheiro.
6. Nem só as vamuila mas também noutras etnias, o herdeiro é sempre o primogénito da irmã mais velha do falecido. Sempre foi assim, por tradiçao, cuja origem e razões se desconhece. Daí, susceptível a especulações.
7. Vestuário: As vamuíla não usam roupas costuradas: rejeitam-nas. Os seus trajes resumem-se a um pano em pregas à frente (otxitati) e a uma pele curtida com adornos atrás (omuhoti), suportados por uma cinta de couro. Á volta do tronco, nú, usam uma cinta entrançada ou de couro sob ou sobre os seios. (omavele).
8. O penteado occipital exibido no programa, imbecilmente interpretado como via de diante, não existe em nenhuma tribo do sul de Angola. Deve tratar-se de algum arranjo fotográfico, originário dos cafundórios ou de uma E.T.
9. Calaári: Não é propriamente um deserto. Está classificado como zona semi-desértica, 520 000 km2, cerca de 86% da área do Botswana. Rica em diamantes, pecuária, paraíso de várias espécies de vida selvagem.
10. Deserto Namibe: Este, sim, é um dos maiores desertos da Terra. Estende-se ao longo da costa da Namíbia (cerca de 1 900 km) prologando-se por mais uns 400 km pelo litoral sul de Angola. Daí o agora nome de Namibe a antes Provincia de Moçâmedes.
11. Vacuvalê: Esta tribo pertence a etnia Herero dispersa pelo noroeste da Namíbia (Hererolândia) até a encosta da Cordilheira da Chela - Angola, a uns mil km do Calaári e a aproximadamente 100 km do deserto Namibe.
As mulheres usam o cabelo empastado com óleo espesso e forte odor extraído do fruto nompeque. Sobre o penteado uma armação circular, feita de varas leves, coberta, até à nuca e parietais, por um pano floreado, limpo, com uma prega acima da testa. São robustas, expressão nobre, feições correctas. Indumentária semelhante a das vamuíla.É um povo pastor, criador de gado bovino, caprino e ovino, logo obrigado à transumância. A sua dieta alimentar é a carne e leite azedo (omavele).
São apodados de ladrões de gado. E são-no, de facto. Mas, pergunto: Que apodo se deve dar a um Soto-Maior, governador-geral de Angola, que em 1941 ordenou, sob seu comando, uma batida a toda zona habitada por estes (guerra dos mucubais), matando muitos, aprisionando outros, roubando-lhes todo o gado (cerca de vinte mil cabeças). E não só: Os presos foram enviados, por quatro anos, para as roças de cacau na ilha de São Tomé e para as pescarias da Baía dos Tigres, entre o mar e as dunas do deserto Namibe. As mulheres, habituadas a boa alimentação, agora sem gado nem homens, experimentaram, a juntar à sua angustia, uma negra fome! Mas não vergaram; conservaram a sua nobre personalidade.
12. Quanto à ridícula representação do pau de vassoura, atribuída aos cuvales, não passa de nojenta invenção. Este povo é suficientemente pudico para se admitir a prática de tal aberração. Eles nunca leram o Kama Sutra.
Por fim: aconselho o Sr. Rui Morais e Castro a estudar geografia, fabricar facas de sapateiro de arcos de barril, a cortar argolas de “bambu” e oferecê-las às “mamuilas”. Ao Jô, recomendo a leitura da obra Etnografia de Angola (centro e sul) de Padre Carlos Estermann.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Estermann
Nota: As palavras sublinhadas indicam, no idioma e pronúncia próprios, o substantivo referente ao assunto que o precede. A primeira sílaba (ô) equivale ao artigo definido a/o, quer no singular quer no plural. As vogais precedidas de h são aspiradas (como no alemão).
Imagens da Internet
esplicaçaão muito bem feita.
ResponderEliminarFala quem sabe! O Seculu Jorge Rodrigues nasceu e cresceu com o povo Muila, nesse sentido, tem autoridade para escrever sobre um povo que conheceu de perto,da forma brilhante como o fez!
ResponderEliminarquem não sabe o que diz não deve dizer nada.Este texto tão bem escrito revela bem o conhecimento da pessoa que o escreveu tem sobre o assunto. Eu pessoalmente não me canso alias adora conversar e ouvir as histórias que o meu ídolo e tio me conta sempre que estou com ele grande inteligência e grande homem bem haja meu tio
ResponderEliminarTens toda a razão. O meu pai é uma biblioteca ambulante. Tenho pena que não escreva mais. Um abraço.
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