segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

FOI HÁ 40 ANOS QUE CHEGÁMOS A PORTUGAL …


Neste ano, já é a terceira vez que vos escrevo acerca de 40 anos volvidos sobre diversos acontecimentos pessoais e familiares.

Desta vez, vou partilhar convosco a nossa parcela, considerando a minha família nuclear e próxima, no êxodo que constituiu a vinda de muitos milhares de refugiados deAngola, Moçambique e dos outros territórios. Por diversas formas vieram, como é consabido. No caso de Angola: grande parte dos refugiados veio pela ponte aérea paraPortugal; outros ainda vieram em navios diretamente de Angola para Portugal enquanto possível; outros milhares, refugiaram-se no Sudoeste Africano (hoje Namíbia) e na África do Sul, onde alguns conseguiram por lá ficar, mas, grande parte destes certamente teve de rumar para Portugal também, ou para outros países, quer por via aérea, quer por navios fretados para transportar os refugiados que estiveram temporariamente alojados em campos. Os números de cada situação e os globais são um tanto imprecisos, consoante as fontes, mas todos juntos fomos largas centenas de milhares de refugiados das antigas províncias ultramarinas.

Ora, narro agora o nosso caso, o da odisseia do meu grupo familiar. Era outubro de 1975. Face às condições de grande instabilidade político-militar na pré- independência de Angola, insegurança, lutas constantes entre forças do MPLA e da UNITA na cidade do Lubango, onde vivíamos nessa conturbada época, aliada à crescente escassez de bens de primeira necessidade, deficiência na assistência de saúde, enfim a zona e a cidade a aproximarem-se quase do colapso social, comercial e económico. Tempos pois estonteantes, de muito risco, altamente inseguros sob todos os pontos de vista, pelo que, fomos forçados a tomar a resolução de também partir... Tal qual, como milhares de refugiados já o haviam feito antes de nós, e como outros o fizeram depois. Era a salvação imediata. E o destino que escolhemos, face a haver uma ponte aérea, foi Portugal, reforçado por alguns de nós sermos funcionários públicos, o que permitiria, prometia-se, e veio a acontecer, ingressar no funcionalismo em Portugal, num criado quadro geral de adidos.

Eis, pois, a constituição desse grupo, desta família que fora de José Maria Rodrigues (este falecido, em condições confrangedoras, no Lubango pouco tempo antes, em 26.09.1975, como já relatei noutro escrito que vos enviei): Irene, minha mãe, na época com 64 anos; sua afilhada Joana, jovem de 14 anos; meu irmão Higino, 32; sua mulher e minha cunhada Aldina, 29; seu segundo filho Bruno, com tenra idade; minha mulher, Helga, 23; com nosso bebé Henrique, quase recém-nascido pois tinha um mês e meio de idade; minha filha Graça, 8; e eu, Júlio, com 31 anos. Nove pessoas ao todo, sendo cinco adultos, três crianças e uma adolescente.

Nas semanas anteriores, foi conseguir encomendar caixotes nas últimas carpintarias em funcionamento na cidade, e ir enchendo-os com o possível: máquina de lavar roupa, outros pequenos eletrodomésticos, máquina de costura Singer (da minha idade, pois entrou na minha casa em Caluquembe no dia em que nasci e que ainda hoje a conservo), tapetes, carpetes, utensílios, aparelhos diversos, bibelôs, imensos livros (meu pai possuíra uma biblioteca razoável e havia sido um grande leitor), algumas mobílias e peças de mobiliário, álbuns de fotografias, slides, malas da cânfora, bar chinês, projetor de slides, écran, utilidades diversas e inúmeras outros objetos que era possível meter em uma dúzia de caixotes, de diversas cubicagens. Tentávamos encaixotar a nossa vida…disfarçar o vazio que crescia na nossa alma.

A minha tia Madalena, prima direita e cunhada de minha mãe, foi incansável na ajuda que nos deu a arrumar os caixotes. Mas de notar que a maioria desses bens encaixotados pertenciam ao recheio da casa de minha mãe, e que fora do meu pai; bem como ao recheio da casa do Higino e Aldina, que arranjaram igualmente os seus caixotes. Mas, os pertences, meus e da Helga, constituídos sobretudo pelas muitas prendas de casamento, este ocorrido ainda não havia um ano na ex-Nova Lisboa (Huambo), ficaram por lá, visto que as condições de insegurança ainda foram piores, mais insuportáveis que as do Lubango e já não foi possível aos pais da Helga, onde os nossos bens se encontravam guardados, providenciarem o seu transporte para Portugal. Quanto aos automóveis, consegui ir a Moçâmedes, uns tempos antes da nossa partida, despachar o carro de meus pais, um Audi 100 LS, e o meu, um Autobianchi A111. Estacionei os dois juntos no imenso parque de viaturas à espera de embarque; ainda pensámos meter coisas nos porta-bagagens mas, receosos, não o fizemos, e ainda bem, pois só o meu carro chegou a Portugal, o de meus pais nunca apareceu…Houve quem o tivesse visto a circular, tempos depois, numa cidade em Angola, subtraído assim ao embarque... O Higino e a Aldina também despacharam dois automóveis, um seu (Mini) e outro (Lancia) dum cunhado os quais tiveram o mesmo destino, isto é, nunca chegaram a Portugal.

Voltando ao Lubango: lá conseguimos ainda alugar uma camioneta que levasse os caixotes à estação do Caminho de Ferro, sita no bairro de Stº António, que seriam transportados para o porto de Moçâmedes (hoje Namibe) a fim de seguirem para Lisboa. Todos estes afazeres, formalidades alfandegárias, requerimentos, guias de desembaraço, etc., quer em relação aos bens, quer a nós próprios, eram conduzidos num stress indescritível, com muita tensão e nervos, e sob emoção e tristeza, face ao abandono iminente de nossas casas e de muitos outros pertences, ainda que alguns fossem móveis eram intransportáveis, mas sobretudo chorávamos por dentro pela saída, forçada pelas
circunstâncias, da nossa, e de nossos ascendentes, querida terra angolana, e assim deixarmos os nossos sonhos. E ficámos apenas com a memória. Talvez alguns acessos de tristeza estivessem a ser anestesiados no momento, pela psicose coletiva que se estabeleceu, ao haver todos os dias um número crescente e imparável de refugiados de partida da cidade, entre conhecidos, desconhecidos, amigos, familiares. E, ainda, no coração de cada um, decerto, haveria uma réstia de esperança de um dia no futuro voltarmos a viver e trabalhar na nossa querida terra angolana…que não desejáramos abandonar (mas a este grupo familiar que relato nunca aconteceu alguém voltar a viver em Angola, pelo menos até à atualidade…).

As datas que refiro de seguida, penso estarem certas. Assim, o dia 10 de outubro de 1975 chegou. Foram as despedidas finais emocionantes, da prima Isaura que chorava, da Madalena que não chorava mas tinha um semblante tristíssimo (ela também, sem o imaginar na ocasião, teria de refugiar-se em Portugal meses depois), etc. Era o meu pai que ficava e deixávamos… lá no cemitério da Mitcha. Tomámos um comboio na estação de Stº António, aliás a estação que servia e serve o Lubango, visto que na época a antiga já fora desativada. Chegava a noite desse dia. Nós, e dezenas ou centenas de outros refugiados tomámos o comboio. Lembro-me que, pelo menos, a cabine onde viajámos, não tinha luz e fizemos a viagem de noite inteira às escuras… O meu amigo de peito e colega Pissarra, padrinho de casamento da Helga, também viajou nesse comboio e connosco continuou, passando praticamente a fazer parte do nosso grupo familiar.

Chegados pela manhã do dia 11 a Moçâmedes, fomos desembarcados no porto comercial. Estava-nos destinado um navio da Armada Portuguesa, a navio tanque reabastecedor S. Gabriel (que hoje já não existe; ver foto). Ali fomos arrumados para  pernoitar da forma como foi possível, mais ou menos assim: mulheres e crianças na coberta, homens no convéns, praticamente ao relento ou nos “varandins” laterais. Não nos queixávamos, resignávamo-nos. E, lá se iniciou a viagem marítima pela costa angolana, julgo que já era da parte de tarde, rumo à capital Luanda. Levávamos connosco farnéis e alguns pertences em malas ou sacos que nos podiam acompanhar. Não tivemos frio, pois em Angola, em outubro, está temperatura amena, não choveu, e dormimos, os homens, encostados uns aos outros, lá em cima, éramos muitos e havia que rentabilizar o espaço, e as mulheres e crianças em beliches na coberta, como já indicámos atrás.


 Navio tanque reabastecedor da Armada Portuguesa



Fotos seguintes: 11 e 12.outubro.1975


  No porto de Moçâmedes enquanto se aguardava o embarque
(Helga com bebé Henrique, Joana, Irene e Aldina)

 Idem, quase a embarcarem (em primeiro plano consegue-se ver o nosso grupo familiar)



Pela manhã, começava o dia 12, até avistámos golfinhos, pois quando navegávamos no final do percurso já o sol rompera, até aportarmos em Luanda.

Irene, Higino e Aldina a bordo do navio reabastecedor da Armada Portuguesa
S .Gabriel, rumo a Luanda

Aguardámos algum tempo no navio e depois fomos levados em autocarros, julgo lembrar-me, para o antigo quartel do batalhão de paraquedistas 21, nos arredores de Luanda, em Belas. O qual estava feito num autêntico campo de concentração, degradado, com instalações sanitárias imundas, falta de água com frequência. A Helga, o bebé e as mulheres e crianças lá armaram melhor proteção, dos mosquitos também, numa antiga caserna e os homens preferiram dormir quase ao relento, e no chão. O Pissarra continuava connosco. Havia distribuição de alimentos e organização dos grupos que seguiriam nos próximos aviões da ponte aérea.

E, faziam-se avisos e chamavam-se pessoas por altifalantes ou íamos a uma secretaria saber informações. Felizmente para nós, apenas estivemos ali uma noite e um dia, mais ou menos, nesse campo tão desolador e tão sujo já, do que fora um impecável quartel. O Pissarra e eu, ainda conseguimos, arranjar forma de irmos ao centro da capital, mormente para recolhermos os nossos processos individuais nos serviços de veterinária de Angola, o que era facultado a quem viesse ingressar no tal quadro geral de adidos.

No aeroporto de Luanda, na noite de 13 de outubro, pisámos pela derradeira vez o solo angolano. Tomámos, um avião soviético, apercebemo-nos disso no decorrer da viagem, rumo a Lisboa. Na cabine só podíamos trazer o indispensável, pois malas e objetos considerados a mais iriam no porão, não facultaram nada. Na barafunda da entrada para o avião, perdeu-se o leite em pó e o biberão do Henrique. A bordo, lá conseguimos que as assistentes arranjassem um biberão e outro leite, mas, para um bebé, foi uma alteração rápida e daí, talvez, o desencadear dum problema de gastrenterologia e desidratação que adveio dias depois em Lisboa, com o seu internamento, com prognóstico muito reservado, no hospital pediátrico D. Estefânia, onde, à partida, houve muita dificuldade em o internar, o que foi conseguido face à sensibilidade dum médico espanhol de serviço. E onde o bebé, sem saber, lutou pela vida durante talvez mais de dez dias. Voltando ainda atrás, à viagem de avião para Lisboa: forneceram-nos refeição a bordo e tentámos dormir, tão exaustos estávamos, psíquica e fisicamente.

Chegámos a Lisboa manhã cedo, era o dia 14 de outubro de 1975. A Cruz Vermelha encaminhou a Helga e o bebé para um local mais recolhido naquelas instalações do edifício do aeroporto, espaços repletos impressionantemente de pessoas, a maioria sentada ou deitada no chão, atapetado com cobertores, com a humidade e o frio já do outono, tudo para nós desconhecido e quase nos amedrontava. Num balcão improvisado do Banco de Angola, trocaram-nos 5 contos de escudos angolanos, por pessoa, por 5 contos do dinheiro de Portugal, embora trouxéssemos, alguns de nós,
dezenas ou centenas de contos angolanos das nossas poupanças. Dinheiro angolano esse que se tornou lixo. Porém, outros refugiados, sabia-se, nem os cinco contos tinham para troca.

Nesse dia ainda, a Helga e eu, apanhámos um táxi para irmos para o parque municipal de Monsanto procurar a casa dum amigo que nos veio a receber durante algum tempo; o táxi deixou-nos algures por Monsanto, perante uma morada incerta, e ainda tivemos de muito andar a pé para dar com a casa do nosso amigo, funcionário do parque, o Pedro Baptista. Desconhecíamos que o IARN, Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais, nos podia ter dado alojamento em hotéis. Mais tarde, viemos a fruir desse apoio. O Higino, Aldina e Bruno foram logo encaminhados, sem muito esperarem, por um cunhado, o Luís que já chegara a Portugal há semanas, para um hotel em Colares. E assim, o grupo separou-se logo à chegada a Portugal. Foi pena, mas foram as circunstâncias. O Pissarra seguiu para o norte para junto de sua família.

E, fomos tentando resolver as nossas vidas de imediato, de desenrasque em desenrasque… De luta em luta. De fila em fila.

Do grupo familiar, cada um teve o seu percurso pessoal e profissional nestas quadro décadas. Sucintamente: minha mãe, Irene, foi doméstica, viveu sempre comigo, faleceu aos 99 anos em Sesimbra; Joana, afilhada, trabalhou em diversos locais, tem um filho, e hoje vive e trabalha em Inglaterra (já foi algumas vezes ao Lubango); minha filha Graça trabalhou em várias empresas, teve três filhas, reside no concelho do Seixal onde é empregada duma indústria; Higino, meu irmão, reside no concelho do Seixal, tem três filhos de Aldina, que foi professora do ensino básico, e faleceu aos cinquenta e tal anos, em 2002, foi sepultada onde vivia ultimamente, em Mafra; seu filho Bruno, é hoje bombeiro e reside na Ericeira; Helga é funcionária e reside em Sesimbra, tivemos mais dois filhos para além do Henrique, este licenciou-se, é funcionário municipal em Sesimbra e reside na Amora, tem três filhos; por fim, eu, Júlio, fui médico-veterinário municipal em Sesimbra, hoje já aposentado, e onde resido (fui duas vezes à nossa terra Lubango: a primeira em 2003, com o Henrique também; a segunda, em 2013, sozinho, ao Lubango e Caluquembe, esta minha terra natal).

Fez há dias, em 14 de outubro, 40 ANOS QUE CHEGÁMOS A PORTUGAL. Outras terras, outras gentes, outras vidas. Os tempos seguintes, ou seja, os primeiros dias, semanas, anos e décadas, duma vida nova, diferente, difícil e desenraizada, onde a amargura pela saudade da terra e da vida que deixámos em definitivo lá longe nunca se desvaneceu, ficarão para outros escritos, talvez.

                                                                                                      Júlio (Sesimbra, out.2015

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