quinta-feira, 19 de abril de 2012

Odisseia de uma gente II



José Maria Rodrigues


João /Maria José – seu primogénito

 


Foi com o apelido Rodrigues que, numa humilde casa, na Huíla, a 11 de Janeiro de 1905, veio ao mundo o primogénito de João e Maria José, que na PIA BAPTISMAL recebe o nome de José Maria – Zeca, para a família.

 


IGREJA DA MISSAO DO HUILAIgreja da Missão da Huila

 


Aos seis anos de idade entra para a escola da Missão Católica da Huíla. Foi seu professor o exigente e severo Irmão Menezes, sobrinho de seu avô Baltazar. Aos onze anos completa, com distinção, a instrução primária, único grau de ensino na época. Único em virtude da transferência, para Luanda, do seminário, que leccionava o ensino médio (equivalente ao depois ensino liceal mais contabilidade e teologia), que ali funcionou de 1882 a 1907. Nessa altura existiam apenas três lojas na Huíla, algumas perniciosas tascas e vadios funantes no centro e arredores. O grosso dos colonos, não só por obrigação mas como única fonte de rendimentos, dedicava-se exclusivamente à agricultura. Logo, todos os braços eram valiosos para as lides agro-pecuárias durante o ano inteiro; e o Zeca presta a sua ajuda em todos os trabalhos. Dotado de invulgar inteligência e com aspirações a um mais além, embora sempre obediente aos pais, não mostra vocação nem jeito para a vida rural.
 

sefaEstudantes da Missão Católica da Huila. Ao centro: Irmão Menezes; ao seu lado direito: António Rosa e José Maria

IRMAO MENEZESEstudantes do Seminário da Missão da Huila. À direita, de batina branca: Irmão Menezes;  à direita deste, sentado,  José, primogénito de Baltasar e Delfina


Aos doze anos vai para o Lubango trabalhar para Manuel Ricardo como empregado de balcão. À chegada sentiu algum choque ao deparar-se com a grandeza da vila, já Capital de Distrito, em contraste com o marasmo da pacata povoação da Huíla. Cerca de três anos depois, bem apessoado que era, facilmente se envolve com duas mulheres casadas, cujo caso, por imprudência, ameaçava passar às línguas do povo. Receoso de possíveis consequências, discretamente, retira-se para o Nanô (terras a norte) na companhia de Manuel Galo, onde este possuía uma das cinco lojas dispersas pelo antigo Caluquembe, no lugar que até hoje é conhecido por “Txicondombolo”: galo, no dialecto da região.

 

 


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Seguiu o seu destino enquanto para trás, inconformados, ficavam os pais e sete irmãos chorando já de saudades. Trabalhando na loja de Manuel Galo conheceu, entre os raros fregueses brancos, um Senhor de apelido Valdez, que fora em Portugal depois Benguela, um grande guarda-livros; agora a residir na margem do rio Cucala, onde abriu uma levada utilizada na rega de trigo, horta e pomar.

 

O Zeca, vendo em Valdez um mestre providencial, logo granjeou a sua amizade com objectivo definido: aprender com ele a profissão de guarda-livros. Senhor de invejável caligrafia e autoridade em aritmética – assimilação do competente professor Menezes – graças às lições e carinho do mestre Valdez, com facilidade alcançou competência para o exercício da profissão que almejava: guarda-livros, profissão, na época, elevada, quando o que contava era a competência e não um rectângulo de cartolina encaixilhado.

Este Senhor Valdez, cujo desvelo pelo seu pupilo Zeca perdurou até o fim de seus dias, era primo de A. Valdez dos Santos, distinto e honesto advogado na Rua dos Fanqueiros e director do imparcial “JORNAL PORTUGUÊS de Economia e Finanças”, silenciado pelo 25 de Abril! Era tio do marido de Lucinda, filha do filósofo e respeitado António Martins da Silva, de cognome Mussorovera (homem alto), o primeiro branco a estabelecer-se em Caluquembe – Cacomba.

 

Experimenta também o comércio ambulante (funante) pelos quimbos (aldeias), que consistia na permuta de lenços, mantas, tabaco e bugigangas; a troco de mel, cera e peles de bovinos. Mas, nas cansativas caminhadas, ingestão de águas inquinadas, fraca alimentação de lucangos (milho torrado), batata-doce e picadas de anófeles (mosquito transmissor da malária) o resultado foram as sezões, a disenteria e uma infecção num pé que o prostrou durante alguns dias.

 

Mas, mesmo debilitado, conserva as mãos firmes para empunhar a pena e a mente incólume para as operações aritméticas que ao longo de muitos anos lhe foram extremamente valiosas. Durante algum tempo trabalha, já como guarda-livros, no estabelecimento comercial de Manuel Jesus, localizado no extremo norte de Caluquembe, a cinco quilómetros do “Txicondombolo”. Temendo um envolvimento com Elvira, filha do casal Jesus, discretamente, sem dar azo a ressentimentos que afectasse a estima de que goza junto do casal Jesus, muda-se para a Chicuma/Ganda, como guarda-livros de Gouveia, Mendes & C.a. Teria 22 anos.

 


Ali se manteve cerca de seis anos; prova do seu valor e da razão da inestimável amizade consolidada e perpetuada entre este e a família: Mendes, Dª Urbana - esposa e seu unigénito Manuel José, padrinho da Lucília.

 

Foi este Mendes, muito respeitado, que lhe faculta mercadoria suficiente para a instalação duma apreciável loja na Cacomba à sociedade com seus primos António e João, que assumiram o negócio, enquanto ele continua no emprego.

 


Acaso ou destino

 


Em 1930, provenientes de Olhão – Algarve, desembarca no Lobito Maria da Conceição Santos, cinquenta anos, natural de Tavira, filha de Manuel Pedro dos Santos e Francisca da Conceição. Viúva de Amador Cristiano, natural de São Pedro – Faro, filho de Manuel Guerreiro e Luísa Gonçalves. Maria da Conceição levou consigo seus filhos Maria dos Mártires, 25 anos e Joaquim, 15 anos; e também sua nora Maria do Carmo, 22 anos, com seu filho Valentim, de 1 ano de idade. No Lobito, à sua espera, estava seu filho Valentim Amador Reis, 21 anos, que fora para Angola um ano e pouco antes, marido de Maria do Carmo.

 

5Maria dos Mártires


De comboio, num percurso de 300km, em 10 horas chegam à Ganda. E dali, de camioneta, até à Ebanga, a 30km, onde o Valentim era empregado de Armando Mendes Gouveia.

Registe-se que este Gouveia, mais conhecido por “Suco iacãi” (Deus das mulheres), era irmão uterino de António Duarte Moura,   homem honesto e grande empreendedor, da Chicala, Caluquembe, Lubango e Bomba, fixa-se na margem direita do Rio Qué onde, em 30 anos, ergue o grande complexo “Agró-pecu-industrial” com especial destaque para a moderna fábrica de salsicharia, a maior e melhor em maquinaria e qualidade das cinco que laboravam no distrito da Huíla. Este complexo foi baptizado de Vila Branca, nome de sua filha.

Da Ebanga, acompanhada de toda a família, Maria da Conceição Santos muda-se para Caconda, acolhida por seu irmão uterino, Joaquim Luís Rascão, um pouco mais novo que ela. É assim que Valentim Amador, com algum dinheiro que a mãe levou, fruto do seu modesto mas honroso trabalho no fabrico e distribuição de pão pelas redondezas de Olhão e alguma ajuda de Rascão, se estabelece definitivamente em Caconda em casa e de conta próprias. Com a prática e veia para o negócio, coadjuvado pela sua incansável mulher, Maria do Carmo, conseguiram, ao longo de 40 anos, alcançar uma desafogada situação.


Destino consumado


Foi na Ebanga onde o Zeca, já amigo do Valentim, conheceu Maria dos Mártires. Desse encontro nasce um mútuo sentimento de afecto que, mesmo contra a vontade da mãe, logo deu em namoro. Um ano depois, na Igreja da Missão Católica de Caconda, é celebrado o matrimónio, presidido pelo Padre Camillo Laagel.

 

 

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Tempos difíceis


A coincidir com o casamento, Angola passava também pelos efeitos da crise económica mundial acumulada desde o ignóbil assassinato do rei D. Carlos e a nefasta implantação da república, em 1910. Com a mudança de sistema, imposto à força das armas, instala-se a desordem e a economia entra em derrocada. Transcorridos 16 anos, com nomeações e quedas de 40 governos, inflação galopante, inevitavelmente, foi declarada a situação de bancarrota.

Convidado pelo Marechal Carmona, Presidente da República, o Doutor Salazar, exigindo plenos poderes sobre todos os ministérios, assume a pasta das finanças. Em quatro anos, sem aumento de impostos, foi retomado o equilíbrio financeiro, e o orçamento do estado, antes com elevados défices sistemáticos, inverteu-se em superavit. Só que, de tal recobro, nada tocou a Angola. Tão-pouco constituiu surpresa. Desenvolvimento e progresso, salvo algumas boas vontades (abortadas), foram “coisas” que nunca preocuparam as tacanhas mentes dos “doutos timoneiros” da nação colonizadora, (assunto a retomar na segunda parte).

Ora, Angola não escapou ao descalabro. Agravado com a mudança da moeda réis para escudo: a conversão foi de mil réis por um escudo. Resultado: os réis passaram a “chamiços e a ritas” (cédulas de recurso sem sustentabilidade), a circulação fiduciária insignificante e as compras e vendas por permuta. Com a introdução da moeda “angolar” as transacções passaram a cinquenta por cento e, graças (perdão) à segunda guerra mundial a proporcionar as exportações de tudo, a situação foi melhorando.

Nova experiência – esperanças goradas


Assim, para enfrentar tal crise, as pessoas tiveram que recorrer a qualquer actividade para, pelo menos, obterem o mínimo do seu sustento. Foi nesse período, deveras crítico, que o Zeca e a sua Maria aventuram-se rumo ao Cuilo, 20km a sudoeste de Caluquembe, para uma minúscula casa próxima de um grande eucalipto, a fim de se dedicar à cultura de milho e trigo nos terrenos de Manuel Jesus onde existiam já levadas alimentadas pelo rio Cuilo. O Zeca já conhecia bem este Cuilo, talvez dos tempos em que trabalhou com Manuel Jesus, pois foi ali que “arranjou” em 1923, o seu filho António, primogénito da Mumbanda, filha do Katxari. Esta Mumbanda, casou depois com Francisco Txóia de quem teve uma filha de nome Maria, irmã consanguínea de Teresa. Este Txóia, banguela dos incisivos inferiores, preparado pela Missão Católica de Caconda, além de agricultor, foi catequista da localidade - Catxolocoto - até o fim da vida, 1974, em cujo velório estive presente na companhia da Lucília, Camilo e Juliana.

Estes terrenos, que bem conheci, estendiam-se pelas duas margens planas do Rio Cuilo, numa extensão de aproximadamente 2/3 km por 500/600 m de largura. O solo, de textura argilo-arenosa, era bastante fecundo. Sei que, no amanho dos campos, foram usadas grandes charruas “Hansnek”, de duas aivecas fixas, importadas da África do Sul, puxadas por seis parelhas de bois

Prática comum, pelos agricultores brancos, no mesmo campo faziam-se duas sementeiras num ano: a de milho, com ciclo vegetativo de 5/6 meses, princípios de Outubro a fins de Abril; e a de trigo, com o mesmo ciclo, de princípios de Maio a fins de Setembro. Esta prática rotativa proporcionava duplo proveito: a obtenção de duas colheitas e a utilização da palha, como fertilizante orgânico, lançada nos sulcos por um ou dois homens a acompanhar a charrua, enterrada pela leiva seguinte. O cultivo do milho, fácil e económico, a menos que ocorresse uma estiagem prolongada, a colheita era sempre certa, cuja produção chegava a atingir 50 sementes; como se dizia na época e não x quilos por hectare. O trigo requeria mais cuidados: solos bem amanhados, regas por gravidade a cada semana, vigiar a passarada desde o engraecer até a ceifa, a partir de meados de Setembro. Havendo o perigo de inesperadas chuvadas durante a sega, os molhos eram empilhados em grandes barracões de paus, cobertos a capim. Em seguida procedia-se à debulha com máquina manual ou, na falta desta, por trilha em grandes eiras térreas compactadas a maço e bosteadas. A partir daí outras operações se seguiam, até ao apuramento do limpo grão que variava, conforme a fertilidade dos solos, entre 10 a 30 sementes.

Os resultados da cultura do trigo, ao contrário do milho, eram sempre problemáticos, pois os contratempos, por sorte dispersos e em áreas restritas, aconteciam: a queda de uma forte geada sobre as searas, assim que o sol aquecia, de exuberante manto verde na véspera, transforma-se na cor do capim da anhara, em Agosto. Estava morta! Um ataque de ferrugem que acontecia quando o grão estava no estado leitoso, em poucos dias a seara estava morta. Nem o gado lhe tocava! Um ataque de piolho, a planta ia adquirindo uma cor cinzenta passando a amarelo até secar.

Gafanhotos

Falei dos cíclicos contratempos que espreitavam os campos do “mesopotâmico” trigo. Mas o maior destruidor, a oitava praga que Deus mandou contra o Egipto, ressurgia, mais uma vez em Angola: os gafanhotos, praga acridiana por que ficou conhecido esse calamitoso acontecimento. Em 1931 – 1932 e 1936 – 1937, entre Maio e Julho, apareciam, no céu azul, altas e densas nuvens de gafanhotos castanhos ao ponto de ofuscar o sol. Como voavam ao sabor do vento, se este não lhes fosse favorável em direcção às searas, desapareciam para pernoitar, muitas vezes, próximo do “alvo”. E o espectáculo repetia-se nos dias seguintes, sempre na parte da tarde, até que o vento soprasse de feição e fraco – 7km/h. Aí, baixavam sobre os verdes campos para a voragem. Ao contrário do salalé (térmitas), que traça as plantas pela base, os gafanhotos principiam pelas pontas, em ininterrupto adejo para que, com os seus sete centímetros de comprimento e uns bons gramas de peso, a planta se mantivesse na vertical devorando-a até ao chão. A devoração, conforme a altura das plantas, podia durar alguns dias até deixarem a terra completamente nua. Com um sistema digestivo de tripa única, à medida que abocanhavam as plantas, automaticamente eram excretadas para logo servirem de banquete à passarada.

 


image_thumb[10]Praga de gafanhotos

 


Momentos antes do ocaso, os gafanhotos abandonam as searas para pousarem nas árvores mais próximas devorando, durante a noite, folhas e casca. De manhã cedo quando estes, imobilizados de hipotermia, as mulheres indígenas, munidas de grandes tximbalas (quindas), os colhiam em grande quantidade que, diziam, ser um saboroso manjar.

Ante tal desespero, concentrávamos todas as defesas para salvar as pequenas áreas de batata e couves. À vergastada, antes destes alcançarem as plantas, e produção de fumo obtido de palha previamente preparada. Por natureza a cebola e os alhos, estavam sempre salvos: devido ao forte sabor, eram rejeitados.

Concluída a devastação, de repente, os gafanhotos, em compactas nuvens, alcançam altitude e, tal como inesperadamente surgiram, desaparecem. Vão pousar em campos abertos, de solos arenosos, para a desova, morrendo em seguida. Ao cair das primeiras chuvas, dá-se a eclosão, vão crescendo na forma de saltões desenvolvendo as asas para, nos meses já referidos, voltarem a atacar, cada ano em maiores nuvens.

Dois anos após o seu aparecimento foram formadas brigadas para combate à praga. Foi utilizado petróleo para alimentar as chamas sobre as áreas da postura e arsénico como veneno aspergido no momento da eclosão. Mas sem resultados apreciáveis: as invasões continuavam. Durante cinco anos a causarem prejuízos incalculáveis, inesperadamente, conforme apareceram assim desapareceram; levados pelo vento a soprar durante dias sempre no mesmo sentido em direcção ao oceano Atlântico, onde exaustos e famintos tombavam para delícia dos peixes.

CONSEQUÊNCIAS – O pão, complemento alimentar desde o princípio do mundo, desapareceu das mesas. Foi substituído pela broa de milho que, cultivado na estação das chuvas, nunca faltou; assim como o feijão e batata.

O que descrevi sobre a praga acridiana foi presenciada por mim, na Huíla, com 6/7 anos e o que fui sabendo (desova, desacridiação e desaparecimento) através de conversas entre os mais adultos sobre o acontecimento. Esta calamidade atingiu todo o sul de Angola onde existissem searas de trigo e outras verduras. E, claro, Caluquembe não escapou à invasão.

 

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Casal José/Maria dos Mártires


 

Regresso a Caconda

Para o casal ZÈ/ MARIA a permanência no Cuilo terminara. O momento obrigava a demanda de outras terras. Nova vida. Mas, antes da partida, para salvaguarda dos campos que se abandonados seriam ocupados por gente estranha, por vontade do seu proprietário, Manuel Jesus, os campos foram parcelados e distribuídos, a título de empréstimo, pelos casais que com eles trabalharam. Esta medida veio a traduzir-se, mais tarde, compensadora. Este povo, que bem conheci, concentrado na zona, era oriundo de Dongoena – sul de Angola – fugidos, com o seu gado, às constantes e ruinosas secas.
 

imageIgreja da Missão de Caconda

 

Assim, depois de quatro anos de trabalho infrutífero, se despedem do Cuilo. De material nada levaram consigo. Mas, como recompensa, levavam nos braços um bem mais precioso: os filhos Lucília e Camilo, ali nascidos, com seu irmão consanguíneo, António, para os embalar. Partiram, mas já com o travo da saudade daquele povo que ficava e lhes fora tão dedicado sem nunca os abandonarem, nem nos momentos mais difíceis; sem nada receberem em troca. Além da gratidão! O sentido do fim deste parágrafo, será confirmado mais adiante quando voltar a falar deste povo.

 

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De pé: António com o Camilo ao colo. Sentadas: Lucília e Mavilda Veiga

 

Agora cinco, transportados de tipóia pelos homens do Cuilo, vão residir por uns meses em Etonga – a 2km da Missão Evangélica – numa casa com moinho, movido a água, propriedade de António Gomes, mais tarde casa de retiro dos missionários evangélicos. Aqui nasceu o Edmundo, em 16 de Agosto de 1935. Um ano depois, em Caluquembe, a 10 de Agosto de 1936, nasce o Zeca, na casa por que passaram Carlos Maria de Freitas, António Santos, Emílio Mendes e por último o Saúl. Agora sete mudam para Caconda para uma casa arrendada.

 

11Casal José Maria Rodrigues, esposa Maria dos Mártires e seus filhos: Camilo, Lucilia, Edmundo e Zeca

 

Por essa altura o Zeca é também um profissional na arte do retrato fotográfico. Com câmara de fole, tripé, fotómetro e telémetro, desde o premir do botão do obturador até as ampliações, tudo era executado por si. Por inexistência de compartimento próprio improvisava, num canto do quarto de dormir, uma câmara escura para revelação das chapas de vidro que passavam a cliché (matriz) e posterior passagem ao papel. Exerceu este ofício subsidiário em especial na feitura de retratos aos pretos obrigatórios nas “cadernetas indígenas”. Fez também retratos e ampliações de pessoas e eventos, cujos clichés guardou religiosamente até meados de 1950. Infelizmente para, irreflectidamente, mandar enterrá-los; acto de que logo se arrependeu ao aperceber-se que havia destruído uma relíquia de imagens de grande valor histórico e sócio cultural jamais obtidos. 

 

O Infortúnio bate à porta
 

Em Outubro de 1938, em Caconda, Maria dos Mártires, ao oitavo mês da quinta gravidez, declara-se-lhe uma persistente uterorragia. Em pânico, o marido recorre ao Hospital da Missão do Bongo, a 100km. O Dr. Parson logo viu que ela corria perigo de vida. O seu estado requeria uma intervenção imediata: cesariana ou provocação do parto, ambas com seus riscos. Este optou pela provocação do parto. O feto foi expelido, mas seguido de grande hemorragia. Todos os coagulantes, a principiar pelo extracto da cravagem, ministrados para a estancar, não resultaram. A Maria dos Mártires, com trinta e dois anos, só com o marido a seu lado, foi-se esvaindo e entrega a alma à Deus. O Dr. Parson ficou arrasado, por não ter optado pela cesariana. Será que a cesariana lhe teria salvado a vida?... Repousa no cemitério de Caconda, ao lado da sua amada mãe Maria da Conceição!


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12Maria dos Mártires Rodrigues e  seus filhos: Camilo, Lucília, Edmundo e Zeca. Uma semana antes da sua morte.

 


O Zeca – só ele soube quanto sofreu por esta perda – logo tomou consciência da realidade ao pensar nos quatro órfãos, dependentes dos seus cuidados e desvelos. Depois de alguns dias em Caconda, com cinco crianças sobre os ombros e o amargo da desventura no peito, retorna a Caluquembe, para parte da casa de Cipriano Godinho como moradia e onde, tempos depois, monta uma pequena loja que entrega aos cuidados de seu filho António e de sua sogra que, entrementes, foi para Caluquembe ajudar a cuidar dos netos. Durante uns cinco anos dividiu o seu tempo entre Caluquembe e Ganda. Em Caluquembe, a trabalhar em fotografia e na ajuda ao pequeno comércio; na Ganda, como guarda-livros de seu amigo Júlio Fonseca, dono de um considerável estabelecimento de luxo e armazém de venda por atacado.

Quinze anos depois – reencontro

Mesmo longe e em constantes mudanças o Zeca nunca esqueceu os pais, a quem escrevia com regularidade, pelo correio, função confiada aos chefes de posto.

ATÉ QUE – Após quinze anos, numa certa noite de certo dia da semana, depois de um desvio pela Missão do Munhino visitar o padre Pereira e ter tomado o caminho errado na bifurcação do mutomboti (árvore de fruto silvestre), a 500 metros do destino, acompanhado do ajudante munano, numa carrinha do padre Laagel, chega ao lugar onde nascera. Ao aproximar-se da casa deve ter recordado os tempos de infância e seu cantarolar enquanto guardava o gado: “Meu Pai da minha alma, minha mãe do coração, por mil anos que eu viva, não lhes pago a criação!”

Só de dia e muito raramente passava algum carro por ali. Assim, com a chegada de um carro àquela hora, dá para imaginar o espanto que o “fenómeno” causou aos pais e aos seis filhos: João, Vitorino, Albano, Hermínia, Dinora e Jorge. A nossa mãe, sempre a mais afoita, abre a desengonçada porta e vê um vulto (não existiam lanternas de pilhas) que avança para ela e pronuncia as palavras: “ Mãe, sou o Zeca.” A nossa Mãe, em delírio, só dizia: “ Não acredito, não acredito! Tragam o candeeiro ”.

Dentro da casa, pega no candeeiro e aproxima-se dele balbuciando: “quero ter a certeza”. O nosso Pai, fazendo da fraqueza forças, lentamente, sai da cama e, com a voz embargada, conseguimos perceber as suas palavras: “é ele, o nosso vira virote.” Seguem-se os abraços e pranto enquanto os cinco irmãos (O João já o conhecia de uma ida a Caluquembe, de carroça) extáticos esperavam pelo amainar da emoção. O Zeca manda levar para dentro de casa uma Tximbala cheia de bananas, oferecidas pelo padre Pereira. Enquanto os três matavam as saudades na presença do João, nós cinco saboreávamos as bananas até que o sono nos derrubou. No dia seguinte foi a vez da distribuição das lembranças, calhando-me um cinto de elásticos entrelaçados. As lembranças chegaram para todos, incluindo os ausentes.

 

 

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Na Chibia (1936). Grupo: casal João / Maria José, filhos genro e netos:plano superior: João e  Alípio; 1º à esquerda: Alípio Jr; 1º à direita: Dinora ao lado do pai; 3º à esquerda: Albano atrás da mãe; sentados: Luis, Pedro e Jorge.

 

No domingo fomos todos passear à Chibía onde tirou um retrato, a um grupo de 17 pessoas, que conservo. Dias depois, numa despedida comovente, o nosso pai, já com dificuldades de locomoção, ao abraçá-lo, balbuciou: “Não voltarei a ver-te!” Graças a Deus, que me lembre, voltou a abraçá-lo mais quatro vezes, proferindo sempre as mesmas palavras. Até que a 12 de Dezembro de 1943 o seu pressentimento se cumpriu. Não sei se nesta primeira visita o Zeca já era viúvo. Calculo que não. A grande tristeza de seus pais era não poderem ir a Caluquembe (como fizeram o João, Sabino e Clara) para conhecerem a nora que, nas suas frequentes cartas, manifestava essa sincera vontade.

Dois anos depois, agora viúvo, numa limusina do Padre Laagel, com chauffeur munano, volta a visitar os pais. Mas, nesta visita aconteceu um lamentável incidente que por pouco não terminou em desgraça. O presunçoso chauffeur segue com o carro para a Missão da Huíla, onde ficou hospedado, sob compromisso de entregar o carro no dia seguinte. Mas o dito munano só apareceu três dias depois para regressarem a Caluquembe. O Zeca, furioso, chama-lhe uns nomes e dá-lhe um tabefe. O dito, regressa à Missão e, momentos depois, reaparece com o baixinho Irmão enfermeiro “Mutiquiri” que, aos berros, dispara os impropérios que lhe apeteceu, gerando-se uma longa altercação.

O nosso pai, um paz de alma, não resistindo ao “bombardeamento”, a cambalear e a desfalecer, é amparado pelo João que o leva para a cama. Ante tal emergência, o Mutiquiri cala-se, pega na sua mala de médico e aplica a injecção própria para o momento. “Pousada a poeira”, o Zeca manda o chauffeur com seu carro de volta a Caluquembe, enquanto o irmão enfermeiro, no seu “gafanhoto “ (carro estreito de um lugar), regressa à Missão.

Depois do almoço – se é que houve almoço – como a nossa Mãe com as duas filhas tiveram que ficar ao lado do nosso Pai, fomos para o outro lado, para a casa da tia Emília situada à beira da estrada onde, esporadicamente, passavam carros. Por sorte, no fim da tarde, passou uma carrinha que o levou para o Lubango acompanhado do João. No Lubango, dois dias depois, apanha uma camioneta que o leva de regresso a Caluquembe.

Ainda na década de trinta, por três vezes visitou os pais: uma vez na companhia do Valentim, dono de uma camioneta para 3 toneladas; outra vez acompanhado de António Monteiro, marido de sua prima Maria Nóbrega, numa camioneta do Mendes, da Chicuma; e a última, nos finais de 1939, em camioneta alugada com chauffeur munano quando, a pedido do pai, leva o Vitorino consigo. Foi numa destas visitas que, amargurado, teve este desabafo: “quantas vezes senti vontade de pegar nos quatro filhos e lançarmo-nos a um poço”. Foi também numa destas visitas que entregou ao nosso Pai uma nota de 500 angolares para liquidação dum débito à Missão da Huìla.

Em 1944, ainda sob os efeitos do desgosto pela perda do pai, volta à Huíla com o cunhado Manuel Guerra que lhe cobrou 20 angolares pela passagem desde o Lubango; procedimento que o chocou. Permaneceu ali uns três dias.

Até 1947 não voltou à Huíla. Imagino para fugir à angústia que sentiria ao contemplar o lugar onde durante quarenta anos, ao lado da sua amada frisadinha, fora a alegria do pai. Não ia à Huíla, mas nas suas frequentes viagens ao Lubango no negócio de café, talvez por informação do João Ricardo encontrou-se algumas vezes com a nossa mãe acompanhada do João. Além disso, em 1945, a nossa mãe foi passar uns dias a Caluquembe.

Dias melhores

O Zeca assenta definitivamente em Caluquembe e entrega-se com total empenho ao negócio, ainda na casa de Cipriano Godinho. Com os lucros que ia obtendo, aos poucos, levanta o seu primeiro prédio, a tijolo, para residência e comércio misto; armazém e anexos a adobe. Um compartimento destes anexos serviu de câmara escura, depósito dos clichés e do diverso material que a arte exigia.

 

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Concluído o prédio, em meados de 1942, o Zeca, casado em segundas núpcias com Irene Conceição, mudam-se para a SUA PRIMEIRA CASA de onde só saiu em 1970, por trespasse para o Camilo, para habitar o seu bonito prédio no Lubango – Bairro Camisão. Na nova loja, atinge um volume e movimento comercial consideráveis. Segundo Joaquim Reis – que adorava o cunhado – o que mais contribuiu para o seu sucesso comercial foi o negócio de café, ideia do seu grande amigo João Ricardo, mais ou menos da mesma idade, irmão de Manuel Ricardo, seu primeiro patrão.

 

 


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Com a afirmação do nome como firma comercial passa a abastecer-se, directamente de Benguela, de mercadoria mais barata e variada. Assim, passa a dispor de condições para atrair aviados e fornecimentos aos alemães, a pagar com as colheitas de café. O café era confiado ao João Ricardo, que por sua vez o vendia aos retalhistas de, digamos, toda a Província da Huila.


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